O meu trabalho representa o que eu chamaria de reconstituição. É um jeito de reconstruir uma identidade que foi apagada e que estamos escrevendo de novo.
Já imaginou sair às pressas do seu país por causa da perseguição política e ser obrigada a deixar tudo pra trás? Foi o que aconteceu com Hortense Mbuyi, uma mulher Congolesa formada em direito econômico e social e ativista pelas causas de direitos humanos.
Para Hortense visitar o Brasil era um sonho e assim que o seu caçula na época, nasceu, o marido decidiu presenteá-la. O presente escolhido foi assistir a Copa do Mundo de 2014, aqui no Brasil, mas com a crise política, a grave violação de direitos humanos e a perseguição tão intensas na República do Congo, os planos mudaram de uma forma que ela nem poderia imaginar. Sua forte atuação na gestão de conflitos, militância pela democracia e pelos direitos humanos eram para modificar violações graves da constituição Congolesa e melhorar a vida dos habitantes. Infelizmente não foi o que aconteceu, Hortense acabou presa e se perdeu do marido. Quando saiu da prisão, precisou de tratamento médico e decidiu vir para o Brasil com Manassé, o filho de 7 meses, mas um pedaço dela ficava lá. Teve que deixar para trás, as duas filhas mais velhas Nephtalie de 4 anos, e Samuela de 2 anos de idade.
Chegou no Brasil no dia 29 de outubro de 2014 com um bebê e sem falar nada de português. “A minha ideia não era ficar aqui, eu ia fazer o tratamento e voltar. As minhas filhas ficaram. Mas em janeiro de 2015, as coisas pioraram na minha terra, alguns dos meus amigos de luta foram assassinados, outros foram presos e eu decidi pedir refúgio”, conta Hortense. “Eu estava em uma angústia, muitas noites mal-dormidas. Quando eu saí da minha terra, eu deixei a minha filha mais velha com 4 anos, foi no dia do aniversário dela e nesse final do mês ela vai fazer 10 anos. Então imagina, 6 anos longe de uma filha? A minha segunda filha tinha dois aninhos, ela não me conhece”, lembra-se ela.
Sozinha em país desconhecido e com um bebê, Hortense se viu obrigada a começar a luta pela integração social do Brasil. Quando chegou não sabia para onde ir, a única coisa que conseguia era falar inglês com algum brasileiro que pudesse ajudá-la. Foi assim que teve a ideia de ir para algum lugar que tivesse o maior número possível de pessoas. “A minha ideia era achar alguém que falasse a língua que eu entendo, a língua que eu falo. Ele me levou na região do Brás, me indicou um hotel e me deixou lá”, conta Hortense.
As dificuldades foram pesadas, não sabia como se alimentar, como alimentar o filho pequeno e nem como se comunicar. Algo que traz o foco para um outro problema que Hortense apontou. “Nas políticas públicas do Brasil, não existe uma orientação para os imigrantes. O Brasil não acolhe, o Brasil só recebe”. Uma verdade que dificultou muito a adaptação dela e do filho por aqui.
Hortense não sabia como se encaixar no país e nem podia exercer a sua profissão de formação, isso porque o Brasil exigia revalidação de diploma, algo que era impossível, pois não teve como trazer. “Quem diria que eu ia pensar em pegar o meu diploma pra levar comigo do jeito que eu sai da minha terra? Eu não consegui trazer as minhas filhas”, relata ela. “Eu tive que pensar: O que eu sei fazer? Além de ser advogada, de ser tudo o que eu sou, eu gosto de cozinhar. Mas será que eles vão comer a minha comida?”, conclui.
Ao participar da formação de Políticas Públicas para os imigrantes, se deparou com uma comunidade diversa, com imigrantes de vários países diferentes. Conheceu africanos que já estavam cansados de comer arroz e feijão e decidiu cozinhar uma comida verdadeiramente africana. Uma promessa que animou o pessoal! “Perguntei se tinha farinha e fubá. Fui fazer o Fufu, que é uma massa feita com fubá, farinha de milho e água. É uma comida bem antiga e é uma base do prato africano.Como aqui no Brasil, que se for falar da base, é arroz e feijão. Você pode comer o fufu todo dia variando o acompanhamento, com carne, peixe, folha de batata-doce, folha de mandioca”, explica Hortense.
E não é que todo mundo adorou! Era o incentivo que ela precisava, se encheu de coragem para começar a cozinhar os pratos da sua terra e levar um pouquinho da cultura e gastronomia da República do Congo para o Brasil, mais especificamente para São Paulo, no Espaço Wema, uma cozinha comunitária que fica na ocupação 9 de Julho. “Aqui no Espaço Wema, cultura e gastronomia são motivadas pela comida afetiva. A gente não produz comida gourmet”, orgulha-se a empreendedora.
As delícias do cardápio africano contam com o Soso Ya Mboka, um prato de galinha com almôndega de semente de abóbora, feijão branco com o peixe Bagre seco e defumado, Couve com a pasta de amendoim e batata doce assada no forno, o famoso Fufu e muito mais.
Hortense conta que na culinária africana grande parte dos pratos costumam usar a diversidade de folhas como acompanhamento e percebeu que no Brasil há muito desperdício da vegetação. “Aqui tem a oportunidade de diversificar o prato e o que não se usa, talvez pela cultura ou por não saber, vai pro lixo”. Pensando nisso, no Espaço Wema são oferecidas oficinas para mostrar como diversificar os pratos e sair um pouco do arroz e feijão. “O Brasil produz muita mandioca, dá pra comer a folha de mandioca também, ela pode ser cozida com feijão, fica muito gostoso”, indica ela.
Relação com o Consulado
Foi quando começou a expor os seus pratos em eventos que Hortense conheceu o Consulado da Mulher. Devido a sua história potente e as comidas gostosas que preparava, as organizações de apoio aos imigrantes começaram a chamá-la para as rodas de conversa. Em uma delas, empreendedoras do Consulado foram apresentar as comidas. No início não conseguiu entrar por não preencher as condições necessárias. Resolveu então, continuar expondo seus pratos nos eventos, onde teve que driblar preconceitos por ser uma mulher negra e oferecer uma comida africana. Teve a sua segunda chance de entrar para o Consulado da Mulher ao receber a ligação de uma pessoa da secretária de Direitos Humanos, da parte de igualdade racial, contando sobre as inscrições e dessa vez deu certo!
Atualmente, Hortense além de cozinhar e promover a cultura do seu país, organiza uma roda de países africanos no Espaço Wema. “A cada produção, eu chamo um
imigrante africano, que vem apresentar um prato típico da sua terra. A gente apresenta o cotidiano da mesa na África, como as pessoas comem dentro de casa, contamos a história e o valor dos ingredientes e dos pratos”, conta ela. “Já tivemos produções da África do Sul, do Congo, de Angola, da Costa do Marfim e do Senegal”, conclui.
A empreendedora continua em uma luta muito positiva pelos direitos dos refugiados aqui no Brasil. “Se for falar 10 nomes da liderança pelos direitos dos imigrantes em São Paulo, o meu nome não vai faltar”, orgulha-se Hortense. Hoje vive com o marido que reencontrou após anos; o filho Manassé, que trouxe do Congo e as duas caçulas que nasceram no Brasil, Davina e Roberta. Sonha em poder trazer as duas filhas, Nephtalie e Samuela; o filho de sua irmã que adotou, chamado Quertus e a mãe que deixou na África. E ter, enfim, a família reunida e completa outra vez.
Komentar