Como a economia solidária pode empoderar vítimas de violência doméstica

Como a economia solidária pode empoderar vítimas de violência doméstica

Vencedora do Prêmio Usinas do Trabalho 2013 conta como conquistar sua independência financeira como empreendedora a ajudou a abandonar casamento conturbado

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Chica da Silva é um nome popular no Brasil por batizar uma mulher que viveu em Diamantina, Minas Gerais, aprisionada pelas correntes da escravidão durante parte do período colonial, na segunda metade do século XVIII. São diversas as versões de sua vida e infinitas as controvérsias sobre sua personalidade: de historiadores a romancistas, de músicas a novelas e minisséries, muitos tentaram retratar a vida da escrava alforriada que conviveu em meio à elite mineira depois de se tornar concubina de um homem nobre, uma das poucas formas que mulheres das camadas mais populares tinham de ascender socialmente na época.

Nas mesmas Minas Gerais, mais precisamente em Belo Horizonte, a chefe de cozinha e empreendedora Francisca da Silva divide com a figura histórica o nome e um longo período de privação de seus direitos básicos. Vítima durante 10 anos de violência doméstica, Xica (com X) se considera hoje uma mulher livre, muito em parte por conta de seu envolvimento com a economia solidária, movimento que contribui para a inclusão de pessoas fora do mercado, propondo novas formas de relações de trabalho.

Vencedora do Prêmio Usinas do Trabalho 2013 junto às suas companheiras da Rede de Alimentação Sabor Mineiro UAI, ela já viajou para diversos lugares do país contando sua história de superação e inspirando outras mulheres a escolherem a liberdade e a autonomia como caminho de vida.

Como começou a sua trajetória na Economia Solidária?

Depois de 10 anos de cárcere privado e de me separar nove vezes do meu  ex-companheiro, eu fui parar em um abrigo da Prefeitura de Belo Horizonte, onde a Coordenaria da Mulher encaminha mulheres que foram agredidas, junto a seus filhos. Lá, eles fazem um trabalho de reintegração, de reinserção com as vítimas e foi aí que me apresentaram ao movimento da economia solidária. Comecei a fazer parte de um fórum de economia solidária, com um grupo de convivência, junto a outras cinco mulheres que também passaram pelo abrigo. Eu pesava 101 quilos, era deprimida e não conversava com ninguém.

Você superou 10 anos de um relacionamento de opressão e violência…

É uma luta que a gente tem grande em relação à geração de renda e a superação da violência, porque a maioria das mulheres nesta situação não tem escolaridade elevada, geralmente têm ensino fundamental incompleto, filhos menores e elas não se separam do companheiro, mesmo ele sendo agressivo, com medo de colocar os filhos em uma situação pior. Só que a situação que elas vivem não é nada pior do que lá fora. Continuar vivendo em uma situação de violência porque não há caminho para geração de renda, isso hoje não é verdade. Porque eu tenho ensino fundamental incompleto, eu enxergo de um olho só e, por sinal, é só 16% e eu consegui sair da violência com três filhos: na época uma com 11 anos, outra com 7 anos e meio e outra com 5 anos. Hoje são mulheres de bem, todas estudaram. Viveram 10 anos comigo na violência, foram também indiretamente violentadas, psicologicamente. Mas graças a Deus hoje são mulheres tranquilas, responsáveis, uma está casada e me deu três netos. Eu dou palestra praticamente por toda Minas Gerais e até para fora do país já fui, dizendo para as mulheres que elas são capazes. Nós precisamos do companheiro para ser amigo, para divisão de tarefas, mas não dependemos dos homens para viver.

Como começou o projeto da Rede de Alimentação Sabor Mineiro UAI?

Em 2005, eu participei de uma conferência de economia solidária com um grupo de mulheres, nós participávamos de um espaço chamado Cidadania, um projeto da Coordenaria da Mulher que buscava nos reinserir na sociedade e também nos dar oportunidade de gerar renda. Eu tinha essa lojinha pequena que onde eu cozinhava e produzia. Quandou fui para a conferência fiquei sabendo que minha lojinha pegou fogo e queimou tudo que eu tinha. Foi aí que eu conheci o pessoal do IMS (Instituto Marista de Solidariedade) e o doutor Wilson Roberto (Fernandes, coordenador de pedagogia do instituto) que me ofereceu ajuda e disse “olha, nós temos uma unidade em Belo Horizonte”. Naquela época as entidades de apoio ainda podiam ceder um espaço físico para os grupos. Eles nos cederam uma cozinha grande em uma área nobre de Belo Horizonte o que me fez chamar outras mulheres que também saíram do abrigo para montarmos um grupo chamado “Trem Bão”. Este empreendimento não vendia muito, então decidimos mudar o nome para “ Buffet Amigos de Xica”. Com isso, começaram a vir as demandas de trabalho, mas nós não conseguíamos dar conta de todas com um grupo de apenas 5 mulheres. Foi quando começamos a conhecer outros grupos do meio e articulamos uma rede em que as demandas maiores pudessem ser divididas. Fizemos uma reunião e escolhemos o nome de Rede de Alimentação Sabor Mineiro UAI e assim começou a nossa história em 2007.

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Hoje quantas mulheres fazem parte da rede?

Diretamente são 25 mulheres trabalhando, divididas em 6 grupos.

Qual foi a importância de receber o Prêmio Usinas do Trabalho 2013?

Minha filha, cê não sabe como a nossa realidade é outra! Graças a Deus! Os freezers nos ajudaram muito porque às vezes a gente não conseguia aproveitar uma oferta de produtos mais baratos porque não tínhamos onde armazená-los. Tem um grupo também que montou um fabriqueta de picolé (com os eletrodomésticos)! Fora as outras coisas que podemos congelar, como polpas. De verdade mesmo, a nossa vida, a nossa realidade é outra. A gente gastava em média 300, 400 reais, já chegamos a gastar até 1200 reais com utensílios e aluguel de equipamentos e hoje a gente não precisa mais fazer isso. Hoje nós temos nossos próprios utensílios que usamos conforme os eventos nos demandam. Mas tá muito bom, muito bom mesmo! Inclusive, temos um casamento neste dia 26, para 503 convidados, eu vou até tirar uma foto dos freezers cheios de polpas de frutas pra vocês postarem lá no site do Consulado!

Quais são os próximos objetivos da rede?

O objetivo específico da rede é se formalizar. Nós estamos terminando de fazer o Regimento Interno e estamos criando um fundo coletivo. A proposta é que cada evento que a gente pegar, digamos que nós íamos alugar um material que custaria 600 reais: já que eu não vou mais alugar, então deste valor, eu retiro 10% e coloco no fundo. Se era 600, vou pegar 60 para fazer crescer o fundo da rede. Porque tem clientes que contratam a gente, mas não dão 50% (adiantado para a compra de matéria prima), e aí nós precisamos pegar dinheiro emprestado para não perder a oportunidade. Pretendemos usar este fundo para a compra de matéria prima. Já a proposta do regimento é estabelecer regras para o fundo e avaliar qual vai ser a melhor forma de formalização para a rede.

Qual a diferença entre trabalhar em um empreendimento solidário e uma empresa formal?

Com 50 anos, ensino fundamental incompleto e, ainda por cima, deficiente de um olho, enxergando só 16% eu até posso ter um trabalho legal porque eu tenho uma história de superação e tenho um curso de chefe de cozinha, que hoje eu nem poderia mais fazer mais pela minha escolaridade. Se fosse para eu trabalhar em uma empresa formal eu ganharia em torno de 900 a 1200 reais, trabalhando 8 horas por dia com patrão. Agora, na economia solidária, eu tenho o direito, a liberdade de fazer minha jornada de trabalho e sou eu que faço meu salário. Tenho o livre arbítrio de trabalhar com quem eu quero e trabalhar onde eu possa trabalhar. Em uma empresa formal não, eu tenho que cumprir o horário e o patrão nem sempre é legal com a gente. Sem contar que pela lei em si, eu estou excluída do mercado de trabalho. A maioria das mulheres da rede tem acima de 50 anos, é negra e têm ensino fundamental incompleto. Todas nós estamos procurando voltar a estudar. Os nossos filhos são jovens e hoje nós estamos tentando fazer com que eles estudem e tenham um certificado, para que consigam um emprego formal.  Uma vantagem pra mim em relação à economia solidária é a valorização do meu saber popular. Para o mercado formal não adianta falar que eu sei. Eu tenho que ter um certificado debaixo do braço, se não eu tô fora. Na economia solidária, não.

Quais são as suas principais inspirações de vida?

Fui cozinheira em casa de família por um tempo e, neste período, eu gostava muito de elaborar cardápio, misturar receitas. No período em eu estive em cárcere privado com meu ex-marido, quando eu não podia sair, eu me inspirava muito na Ana Maria Braga, e guardava várias receitas e materiais dela. Depois, no caminhar da vida por aí, eu tive uma pessoa que eu me inspirei muito, que considero minha irmã, minha mãe, tudo, que é a outra coordenadora do IMS, a Shirley (Aparecida Almeida) Silva, que assessorava a gente, dava uns empurrões, que eu até brinco e digo: “quando eu crescer, eu quero ser igual a ela”.

Você é um exemplo de superação de adversidades e é hoje fonte de inspiração para diversas mulheres. Que recado você tem a dar para aquelas que estão passando pelas mesmas situações que você passou?

Eu digo o seguinte: que elas têm 50% chance de morrer ao lado do homem que elas dizem que amam e 50% de chance de viver mesmo amando esse homem, mas vivendo intensamente fora (da relação). Ninguém é de ninguém. Escolha os 50% chance de viver fora, livre, alegre, com a vida nas suas próprias mãos. As nossas vidas só pertencem a Deus. Ninguém foi feito para ser espancada, ninguém foi feito para ser agredida, ninguém foi feita para ser desrespeitada, então que levantem a cabeça! Eu, com 88 pontos no rosto, 10 no olho, e com 3 filhas para  criar e só a rua para andar, eu superei e eu consegui. Se eu consegui, elas também podem! Então é confiar em Deus e primeiro em si. Se ela valorizar a si, ela terá outros valores também. Então é este recado que eu deixo para as mulheres do Brasil e do mundo!